É uma aventura lúdica adentrar o “mundo” criado por Arthur Bispo do Rosário, ícone da arte contemporânea brasileira. Comparado com Andy Warhol e Marcel Duchamp, Bispo do Rosário representou o Brasil na 46ª Bienal de Veneza, um dos mais prestigiados eventos internacionais de artes plásticas do mundo, juntamente com o artista Nuno Ramos, suas obras continuam sendo expostas em variados países. As 802 obras deixadas por Bispo do Rosário foram produzidas sob condições adversas e motivadas por uma fé inflexível, ele acreditava estar cumprindo uma missão divina: representar tudo o que existe no mundo. O artista recriou um mundo em miniatura, mantos bordados, estandartes, assemblages (técnica que consiste na justaposição de elemento), e reuniu, em séries, muitos objetos. Segundo o próprio Bispo do Rosário este novo mundo seria apresentado ao Todo Poderoso no dia do juízo final, e seria um mundo “sem trevas, planalto ou precipício”, “sem miséria e nem pobreza”.
A criatividade era abundante, enquanto os materiais eram escassos. Bispo improvisou os recursos de que necessitava para a realização de sua obra, ele desfiou o próprio uniforme azul da colônia, símbolo máximo da despersonalização, para bordar com os seus fios uma arte de vanguarda, irmanada com movimentos como a Pop Art e o Novo realismo. As sucatas recolhidas pelo artista nas suas perambulações pela Colônia Juliano Moreira, sobras e restos, ironicamente, colocariam o Brasil no mapa-múndi das artes plásticas. As palavras também desempenharam um importante papel na obra de Bispo do Rosário, elas foram pintadas, escritas, e emergiram, especialmente e em profusão, em bordados, na forma de nomes de pessoas célebres e anônimas, registros de idéias, e extratos poéticos.
Bispo do Rosário foi um homem de origem humilde, nasceu em 1909 em uma cidadezinha sergipana chamada Japaratuba. Filho de Adriano Bispo do Rosário e de Blandina Francisca de Jesus, o artista foi marinheiro, pugilista e, entre outros trabalhos, prestou serviços para uma família tradicional carioca, os Leoni. Bispo se recusava a receber salário, trabalhava em troca de moradia e alimentação.
A “outra” origem de Arthur Bispo do Rosário, não a do nordestino negro e pobre, mas, a do “eleito”, “Filho do homem”, começou às vésperas do natal de 1938, quando a cortina que revestia o teto do mundo se rasgou e ele recebeu, por parte de sete anjos, o chamado para se apresentar. Bispo vagou por dois dias pelas ruas do Rio de Janeiro seguindo o exército angelical e chegou ao Mosteiro de São Bento. Ao adentrar a capela ele anunciou que era “o juiz dos vivos e dos mortos, o Cristo”. Bispo esperava ser reconhecido pelos religiosos, porém, enquanto os sinos das igrejas dobravam para receber “o enviado de Deus”, arquetipicamente, tal como aconteceu com o Cristo, Bispo caiu nas mãos da autoridade terrena. Preso por policiais militares foi enviado para o hospício da Praia Vermelha. No dia 25 de janeiro de 1939, Bispo do Rosário adentrou o portão da Colônia Juliano Moreira, que continha na entrada a profética frase: praxix omnia vincit (o trabalho tudo vence).
Classificado pela psiquiatria como esquizofrênico-paranóico, Arthur Bispo do Rosário conheceu a realidade nua e crua da vida no sistema manicomial. A Colônia Juliano Moreira, instituição destinada a abrigar “expurgados da sociedade”, doentes considerados crônicos, “casos irreversíveis” auscultados pela psiquiatria carioca da década de 30, foi a morada de Bispo por cinco décadas. As visões “místicas” e os “delírios de grandeza” fizeram com que o artista fosse encaminhado para o pavilhão 11 do Núcleo Ulisses Viana, lócus privilegiado da geografia da exclusão que era ocupado pelos internos considerados mais “perigosos”.
XXXOs limites geográficos da colônia compreendiam uma área verde de cerca de sete milhões de metros quadrados, com grutas e cachoeiras que integravam a antiga Fazenda Engenho Novo, desapropriada para abrigar o hospício. Em meio à mata atlântica havia uma raridade arquitetônica do século XIX, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios.
Os portadores de transtorno mental greve colhem, hoje, os frutos da luta antimanicomial em prol da desospitalização. Os manicômios, cujo modelo de assistência teve a sua ineficiência comprovada, estão sendo substituídos por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e por Casas lares, e a legislação, se não é perfeita, reconhece os direitos dos portadores de transtorno mental grave. Mas em 1938 a situação era bem diferente, pois as técnicas psicanalíticas propostas por Freud na virada do século XIX, só chegaram à Colônia Juliano Moreira em 1981, antes disso, esta reproduzia as experimentações que chegavam de centros psiquiátrico europeus, ricas em perversidades. O eletrochoque, por exemplo, aparato desenvolvido na década de 30 pelo italiano Ugo Cerletti, a partir da visita a um matadouro de porcos, foi muito bem recebido na Colônia, tanto que havia uma máquina em cada Núcleo. O dramaturgo Antonin Artaud, em 1945, escreveu ao seu psiquiatra pedindo a interrupção do eletrochoque, ele disse: “o tratamento apaga a minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se vê durante semanas em busca do seu ser”. A lobotomia foi um “tratamento” recebido na Colônia como a “salvação da lavoura”. Inventada em 1936 ela rendeu ao seu criador, o neurologista português Egas Moniz, o Prêmio Nobel de Medicina. Bispo, como por milagre, safou-se de muitas destas armadilhas da psiquiatria de sua época.
Ex-lutador de boxe e possuidor de grande força física, Bispo do Rosário passou a ajudar os enfermeiros na contenção dos pacientes mais violentos, conquistando assim, um lugar para si na Colônia, ele era o “xerife”. O artista fez amigos no manicômio, ele empreendia algumas tarefas e usufruía de pequenos privilégios como o de “tomar café com os guardas nos bastidores do poder”. Com o passar do tempo os enfermeiros passaram a respeitar os períodos nos quais Bispo submergia no oceano particular de vozes que lhe diziam o que precisava fazer, eram épocas de recolhimento e produção frenética.
O cunho místico que orientou o processo criador de Bispo do Rosário exigia o isolamento. Foi do seu mundo particular que a ele confrontou o poder opressor do sistema psiquiátrico vigente. Uma infinidade de artigos de consumo do hospício segregados em blocos: galochas, colheres, fivelas de cintos, cabides, seringas, pentes, ferramentas, pipas, chapéus, rodos, bolas, capacetes, foram reunidos e utilizados numa ação criativa, uma “obra-escudo”, esta foi, de certa forma, uma expressão de resistência.
A visada psicanalítica chegou a Colônia após 1981 e os pacientes passaram a ser estimulados a falar. Foi nesse período que Rosângela, estudante de psicanálise, chegou à Colônia, e um forte vínculo se estabeleceu entre ela e Bispo. Nessa época o artista passou a construir as miniaturas em dobro para presenteá-la, Rosângela tornou-se para Bispo uma personagem idealizada, ela era o seu anjo redentor, tanto que ele escreveu: “Rosângela Maria Diretora tudo eu tenho”.
Enquanto, na clausura do seu “quarto-forte” (cubículo minúsculo que abrigava um colchonete e um buraco no solo), e longe dos olhares curiosos, Bispo do Rosário escondia os mistérios do seu “novo mundo” em formação, no mundo, a arte explodia em novos conceitos. Na Itália de 1962, Piero Manzoni seguia a tendência do New Dada explorando a desordem dos materiais e expondo, em galerias, objetos do cotidiano. Pães e ovos cozidos deram forma a obras que, depois de expostas, eram consumidas pelo público. Manzoni expôs caixas com as próprias fezes numa obra denominada Merde d’artiste. Obras de Manzoni, como a assemblage de paezinhos, encontrou eco nas obras de Bispo do Rosário, tanto nas peças que agrupavam “bugigangas” em série, quanto nas garrafas plásticas preenchidas com fezes e urina, organizadas pelo artista.
O sistema social opressor era confrontado por obras escatológicas e improváveis e muitos artistas se engajaram na tentativa de enterrar a tradição. O francês Arman, por exemplo, artista plástico representante do Novo Realismo, passou a tomar os bens de consumo da sociedade moderna para reorganizá-los em repetições aleatórias, suas obras mais conhecidas intitulam-se Latas de lixo e Montes de detritos. Outro francês, Íris Clert, produziu obras como Retrato de Sonny Liston (1963), que consistia num amontoado de ferros de passar roupas que alcançava 85 centímetros de altura. Um ferro de passar roupas, daqueles antigos e pesados, também integrou as assemblages de Bispo do Rosário. Ironicamente, enquanto os artistas denunciavam a compulsão capitalista no mundo, Bispo estava alheio a movimentos artísticos, galerias de artes, marchands e mecenas, ele era um excluído do sistema.
“O senhor do labirinto” não gostava de falar sobre a sua história de vida, quando lhe perguntavam sobre a sua origem, ele respondia apenas: “Um dia eu simplesmente apareci”. Muito do passado do artista emergiu na sua obra do recôndito da memória: signos da infância e tradições de um lugar (Japaratuba) que tem como centro a Igreja de Nossa Senhora da Saúde. Os bordados, as fantasias do Dia de Reis, a coroação do Rei e da Rainha em vestes cravejadas de bordados e franjas, ambos negros, nos Folguedos, bem como, a pressão cultural representada no nome que reúne dois termos imantados pela religiosidade católica (Bispo + Rosário). Em um dos bordados do artista aparece a inscrição “Missão Japaratuba”, fragmento que comprovam a riqueza cultural herdada, que foi poeticamente trabalhada em fardões tecidos, adornos, rebordos costurados. Variações estéticas também incorporaram temas marítimos; embarcações com mastros, bóias, botes salva-vidas, âncoras e bandeiras, reminiscências da época de marujo. Bispo se designava “Rei dos Reis” e, para si, teceu um manto avermelhado, salpicado de bordados com o qual seria coroado, o “Manto da Apresentação”, peça considerada a sua obra-prima.
Bispo esperava que os mesmos sete anjos que lhe transmitiram “o chamado” viessem buscá-lo “com poderes e glórias” para levá-lo “para cima”, e visando a salvação do mundo ele construiu uma obra intitulada “A arca de Noé”, um barco feito com papelão e pano. O sagrado e o profano perpassam toda a obra de Bispo: bandeirolas juninas, a bandeira do Brasil, signos religiosos como um coração de Cristo (entalhado na madeira), imagens de santos, medalhinhas da Virgem Maria, cruzes e crucifixos ilustraram a sua via-crucis estética.
Bispo realizava jejuns sazonais para ficar “todo brilhoso, dos pés a cabeça”, até tornar-se “transparente” e “subir aos céus na hora da passagem”. Entre delírios e momentos de lucidez, Bispo do Rosário construiu uma obra monumental, que “possui vocação para a vitória”, ao tecê-la, o artista elevou o seu eu para além da condição de “louco e asilado”. Bispo, já idoso, passou atrair olhares forasteiros, especialmente dos jornalistas. Foi a partir de 1985 que a sua obra ganhou visibilidade e começou a se projetar nacionalmente. Ele posava altivo para as câmeras, vestindo o “Manto” e empunhando estandartes. Nuances da vida e da arte de Bispo do Rosário tem sido trabalhadas por artistas em filmes, teatros e livros. A Editora Rocco, após 15 anos, reedita obra Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto, escrita pela jornalista Luciana Hidalgo, vencedora do Prêmio Jabuti de 1997. Essa obra revela um estudo aprofundado que conta com pesquisas realizadas na Colônia Juliano Moreira e em Japaratuba, bem como, com entrevistas. Luciana Hidalgo afirmou que, após trilhar o “labirinto de palavras, histórias e bordados”, do universo de Bispo do Rosário, saiu “outra”.
A morte de Bispo do Rosário em 1989 suscitou a preocupação com o destino e preservação de sua obra, então foi fundada a Associação de Amigos dos Artistas da Colônia Juliano Moreira. Atualmente, Arthur Bispo do Rosário dá nome ao único Museu de Arte Contemporânea, cujas exposições acontecem em galerias situadas nas dependências de uma instituição psiquiátrica. O acervo do Museu Bispo do Rosário foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio do Rio de janeiro (INEPAC), e as obras ficam expostas permanentemente. Municipalizado, o Hospício Juliano Moreira tornou-se Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira.
Renata Bomfim
Poeta e arteterapeuta