"Duplo Feminino",1.74x0,74m sobre tela de Dayse Egg de Resende, 2012. |
Florbela Espanca nasceu no dia 8 de dezembro de 1894 em Vila Viçosa, região do Alentejo português. A poeta escandalizou a sociedade portuguesa do início do século XX com seus poemas sensuais e com o seu comportamento social, que caminharam na contramão do que se esperava de uma mulher de sua época. Mais conhecida como poeta, Florbela também publicou contos, fez traduções de romances do francês para o português, escreveu uma profusão de cartas que deram forma a um rico acervo epistolar, e escreveu um diário que só foi publicado cinquenta anos após a sua morte, ele é conhecido como “Diário de último ano”. O diário íntimo é um fetiche na contemporaneidade, ele é um gênero literário que, mesmo aparentando oferecer ao autor um espaço de liberdade total, está sujeito ao calendário, como destacou Maurice Blanchot na obra O livro do porvir: “sob a proteção dos dias comuns”.
O diário abriga aquilo que não pode ser relatado e variadas paixões, ele preserva os dias resguardando-os do furor do esquecimento, nele, o discurso fica no interstício, na fronteira entre a ficção e a realidade. No diário o real é recriado via ficção, pela literatura.
Ainda no relato inicial do diário Florbela escreveu: “Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara nesse mundo ─ uma alma ─ se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me. A poeta esperava que alguém a decifrasse, a interpretasse, dando acabamento ao seu eu fragmentado, incompleto e mutilado pela vida. O diarista é um agente ficcional que se performa na frente do leitor. A escrita no diário serviu, assim, como um espécie de tábua de salvação, por meio da qual a poeta reviveria, construída pela imaginação do leitor.
A rapariga autora do diário se declara “sempre sincera para consigo mesma”, e não reconhece na sua vida “um só ato covarde”, num mundo no qual “toda gente o é... mais ou menos”: “Honesta sem preconceitos, amorosa sem luxúria, casta sem formalidades, reta sem princípios e sempre viva, exaltantemente viva, miraculosamente viva, a palpitar de seiva quente como as flores selvagens da tua bárbara charneca”. Florbela elegeu o seu diário como um espaço privilegiado para a ficcionalização da vida, ele perfaz um roteiro de insatisfação localizada “entre a vertigem de enlouquecimento, da esquizofrenia lírica, e que descerra, todavia, uma insânia genial”, como destacou a crítica literária Maria Lúcia Dal Farra. Observemos o fragmento do diário datado do dia 22 de janeiro de 1930, no qual Florbela escreveu: “Faço as vezes o gesto de quem segura um filho ao colo. Um filho, um filho de carne e osso, não me interessaria talvez, agora... mas sorrio a este que é apenas amor nos meus braços”.
No diário de Florbela o vivido é reencenado e já não é possível identificar, com clareza, a fronteira entre o vivido e a arte, entre a autora e seus duplos. O diário possibilitou à Florbela estar a só com a sua fantasia e, “ apanhar tanto o excesso quanto a perda” da vida, na difícil tarefa de tentar reter o tempo.
O último registro do diário, datado do dia 2 de dezembro de 1930, exatamente sete dias antes do seu suicídio, 8 de dezembro, diz: “E não haver gestos novos e nem palavras novas! Foi, também, no dia 2 de dezembro que Florbela escreveu uma carta para a amiga Maria Helena Calás, com instruções exatas sobre o que fazer com os seus pertences após a sua morte. Florbela também deixou uma carta destinada ao seu marido e postais de despedida para as amigas mais próximas. Florbela tinha consciência de que o diário era o lugar do artifício e da performance, tanto que declarou: “as mesmas palavras nos servem para exprimir a mentira e a verdade!”.
Renata Bomfim
Exaltação
Viver! Beber o vento e o sol! Erguer
Ao céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!
A chama, sempre rubra, ao alto a arder!
Asas sempre perdidas a pairar!
Mais alto até estrelas desprender!
A glória! A fama! Orgulho de criar!
Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos estáticos, pagãos!
Trago na boca o coração dos cravos!
Boêmios, vagabundos, e poetas,
Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!
Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade" Tema Emoção.